Agente Paranoia (Mōsō Dairinin, 2004)
- Pedro Alves
- 27 de mai. de 2018
- 4 min de leitura

A criança perdida é o espetacular cogumelo no céu. A criança perdida é amiga dos pássaros que invadem essas terras.
Conheci Satoshi Kon por acaso. Em uma das minhas últimas viagens para Brasília, ocorria uma mostra dedicada a animações japonesas. Foram projetadas as quatro (únicas) obras produzidas pelo diretor japonês. Lembro-me que foram os filmes que mais gostei dentre todos os exibidos, seja pelo uso da animação ou pela forma com que a história havia sido desenvolvida. Sai da sala de cinema querendo fazer uma maratona de tudo que o Kon já havia produzido, mas descobri que, assim como Jean Vigo, o diretor havia falecido muito jovem. Ele desbravou a televisão apenas uma vez com ‘Paranoia Agent’, e resolvi guardar em um potinho metafórico por ser a última coisa inédita dele existente — ignorando toda a história que envolve o interminável ‘The Dream Machine’.
Pois bem. Comecei a assistir Paranoia Agent sem a pretensão de fazer uma maratona, mas percebi logo nos primeiros três episódios que não seria uma escolha que eu pudesse fazer. Eu iria maratonar toda a animação. Posso dizer com toda a certeza que, ao finalizar seu último episódio, a animação é a obra-prima de seu criador conseguindo ser uma síntese de todos os pontos abordados por ele em sua carreira cinematográfica.

A sinopse inicial de Paranoia Agent é relativamente simples: após o surgimento de um agressor de patins dourados, boné de beisebol e um taco amarelo torcido,os habitantes de uma metrópole entram em uma crise de paranoia, a qual o título se refere. Ao longo de seus 13 episódios, a série não propõe respostas a seus questionamentos, mas, sim, tenta desenvolvê-los a partir de uma premissa básica: quais seriam as consequências reais de uma mentira? A partir dos incidentes envolvendo esse agressor misterioso denominado de ‘shonen bat’, Satoshi Kon constrói uma matrioska de narrativas, onde peças do grande quebra-cabeça são apresentadas ao mesmo tempo em que não podemos confiar cegamente em nenhum de seus personagens.

Muito antes de ‘Game of Thrones’ ou até mesmo de ‘Lost’ descobrirem o poder narrativo de entregar o protagonismo de seus episódios para personagens secundários, Satoshi Kon conseguiu desenvolver toda sua odisseia policial dando a personagens periféricos a função de levar a narrativa adiante. Temos episódios que são focados na dupla de policiais responsáveis por investigarem o caso, mas temos outro protagonizado por quatro vizinhas sádicas e suas fofocas mentirosas sobre o shonen bat (com direito a uma maravilhosa piada com o conto ‘The Last Leaf’ do O. Henry); acompanhamos a rotina de vítimas que teoricamente foram atacadas diretamente pelo agressor do bastão, mas também acompanhamos um trio de personagens tentando se suicidar de todas as maneiras possíveis sem sucesso. Satoshi Kon prova que tem um controle inquestionável sobre a história que pretende contar. Tenho que chamar atenção também para a cronologia utilizada por ele que preza, antes de mais nada, pelo desenvolvimento de personagens; fazendo, por exemplo, que saibamos ao final de um episódio que o shonen bat foi capturado, mas somente descobrimos a maneira como essa captura se desenrolou no episódio seguinte.

Um dos vários pontos tratados durante os episódios é relacionado à maldade como algo presente durante a infância. O shonen bat é descrito como um estudante da escola primária pelas suas vítimas, o que insufla ainda mais a paranoia na população em geral. Devemos considerar o histórico do Japão de possuir assassinos desde a mais tenra idade, além de toda a discussão relacionada ao tema que está presente na sociedade nipônica — o que somente torna a crítica do criador da série ainda mais mordaz e certeira. Todavia, por mais que critique a histeria produzida pelo medo da criação de assassinos juvenis, Kon não trata a infância como algo puro e livre de todo mal. Isso fica bem claro durante o desenvolvimento do personagem Yuichi Taira que, após perder seu status de popularidade na escola, lida com todo o mal incontrolável que surge em seu interior. Em certa altura do episódio, a única diferença entre Yuichi e o shonen bat é a coragem para realizar o crime.

Os pontos presentes em outras obras do diretor como a dissociação de personalidade vista em ‘Perfect Blue’; a rotina de pessoas em situação de rua vista em ‘Tokyo Godfathers’; a metalinguagem utilizada no ‘Millennium Actress’ e a utilização de outras realidades mentais desbravadas em ‘Paprika’; podem ser vistos encarnados em personagens e situações no decorrer da série. Kon atravessa por diversos gêneros presentes nas animações japonesas televisivas sem que seja possível categorizá-lo em em nenhum deles; mudando traços, animação e, inclusive o ritmo durante seus episódios — sempre avançando com sua trama principal.
A primeira vista, o visual de seus personagens pode fazer o espectador relacionar a animação com outro seriado de TV tão misterioso quanto: Twin Peaks de David Lynch. O convite na cena pós-credito de seu episódio derradeiro serve ao propósito de aproximar ainda mais as duas obras ao mostrar um de seus personagens — muito semelhante ao Man from Another Place da obra lynchiana — fazendo um convite ao espectador para revisitar a obra e desvendar por conta própria às indagações que ficaram “abertas” relacionadas a alguns dos muitos personagens. Acabei de terminar o seriado há apenas alguns instantes, mas já me sinto impelido a assistir novamente todos os seus capítulos. Paranoia Agent é potente em sua tarefa de fisgar o espectador e entregar muito além do que a audiência está esperando.
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