Boyhood: da infância à juventude (Boyhood, Richard Linklater, 2014)
- Pedro Alves
- 25 de ago. de 2018
- 7 min de leitura

Quero começar esse texto sendo sincero com você: eu amei Boyhood! Eu gostei tanto do filme que pode ser considerado suspeito a minha escrita de um texto crítico sobre a obra. Na época de seu lançamento, eu assumi o papel de messias e fui com todos meus amigos, parentes, conhecidos e, na maior parte das vezes, sozinho em diversas projeções. Fui em diferentes cinemas, cidades e estados, vi com diferentes companhias e com diversos humores; e, mesmo assim, sempre fui tocado pelo filme do Linklater de uma forma extremamente potente. Conheci várias pessoas que não curtiram o filme tanto quanto eu, mas pouquíssimas que o odiaram. Para mim era (e ainda é) impossível você odiar Boyhood; é, no mínimo, uma experiência diferente de tudo já lançado — o coming of age definitivo. Em diversas conversas com as pessoas que detestaram o filme, um argumento rotineiro costumava aparecer: “se não tivesse sido gravado em 12 anos, você não teria curtido tanto”. Era um argumento que eu não tinha como contestar. Demorei muito tempo para perceber que, caso não tivesse usado esse dispositivo (registrando um pouco de sua narrativa a cada ano), Boyhood não existiria. A força do filme está exatamente nessa passagem do tempo. Tempo esse que parece ser o tema que guia o diretor em suas criações: seja ao acompanhar a passagem de tempo de forma mais intrincada durante a sua trilogia Before (Antes do Amanhecer (1995); Antes do Pôr do Sol (2004); Antes da Meia-Noite (2013)) ou no conflito de gerações presente em Escola de Rock (2003).

Recentemente me deparei com um artigo sobre Boyhood escrito por Spencer Kornhaber para a revista ‘The Atlantic’ que reacendeu minha paixão. Revi o filme e, como tenho feito recentemente com meus filmes favoritos, resolvi colocar meu amor por ele em palavras.
Antes que eu me esqueça, Linklater rainha, Iñárritu nadinha!
Como já afirmei no começo desse texto, o dispositivo usado por Richard Linklater é o coração do filme. Durante 45 dias espalhadas entre os anos de 2002 e 2013, o diretor e o resto da equipe se encontraram para gravar a história de um garotinho que vai gradualmente envelhecendo até se tornar um calouro na universidade. O método usado por ele nos bastidores foi “simples”: realizar curtas-metragens de 10 a 15 minutos anualmente, cada um abarcando um ano na vida do protagonista, e, ao fim, editá-los em um longa.

Essa simplicidade, contudo, acarretou algumas problemáticas para a produção. Cathleen Sutherland, a produtora, enumera no artigo para a ‘The Atlantic’ as duas maiores: 1. Orçamento, e 2. Equipe técnica. O orçamento anual alocado pelo estúdio (IFC Films) e repassado para o filme era fixo, mas, graças a inflação, seu valor não permaneceu constante. Em decorrência disso, as locações precisaram ser escolhidas com o pensamento de que a equipe conseguiria, mesmo com a variação no orçamento, retornar a elas durante os anos seguintes. O problema enfrentado em relação a equipe técnica possuiu relação direta com a forma com a qual o filme foi captado. Para que não sofressem com a variação das mídias digitais que eram suplantadas em uma velocidade assustadora, foi decidido que o filme seria rodado em película 35 mm. Contudo, Sutherland revela que com o passar dos anos foi se tornando cada vez mais difícil encontrar profissionais que sabiam carregar película. De acordo com ela, os membros mais novos da equipe somente haviam trabalho com câmeras digitais. Existe outro elemento potente de identificação: o fator nostalgia. A cronologia precisa do filme nunca é revelada de forma direta. A passagem do tempo, que avança constantemente, somente é identificada pelas referências da cultura pop e pelos avanços da tecnologia. A equipe de produção também teve o cuidado de utilizar apenas canções que haviam sido produzidas e lançadas no mesmo ano em que a cena onde tocam se passa. Por conta disso, vemos os personagens jogando ‘Halo 2’ (2004), assistindo ‘O Albergue’ (2005) na televisão ou participando do evento de lançamento do livro ‘Harry Potter e o Enigma do Príncipe’ em 2005.



‘Halo 2’ (2004), lançamento de ‘Harry Potter e o Enigma do Príncipe’ em 2005 e ‘O Albergue’ (2005)
Todavia, existe algo a mais na obra.
Não seria somente a técnica utilizada ou os elementos nostálgicos que proporcionaram a ‘Boyhood’ figurar entre os únicos 11 filmes a receber 100 no Metascore, a pontuação mais alta possível obtida através das críticas de profissionais da área agregadas ao Metacritic — e, até agora, o único filme a receber essa pontuação durante o seu lançamento original. Existe algo que mexe com grande parte dos espectadores no ato de observar o amadurecimento de Mason (Ellar Coltrane); da infância para a idade adulta. Algo que dialoga com a nossa natureza humana.
Há algo de fraternal ao acompanharmos um menino de 7 anos em suas primeiras experiências e envelhecendo na frente de nossos olhos. O próprio filme dialoga sobre isso em diversos momentos. Gostaria de citar uma das cenas que, pra mim, é a mais direta: o sermão da igreja. O pastor, ao contar uma parábola bíblica, refere-se a uma fala específica de Jesus para um de seus fiéis: “[…] abençoados são aqueles que acreditam sem ver”. Um sermão que dialoga com a sétima arte no geral, mas que, especificamente nesse caso, aponta a maior das mágicas causadas pela narrativa. Conforme vamos acompanhando a evolução de Mason, nós torcemos por ele, ficamos tristes por ele e tememos pela sua segurança.
Por mais que se trate de uma narrativa ficcional e nunca tenham a oportunidade de encontrar Ellar Coltrane pessoalmente, os espectadores saem da projeção se considerando parte de sua trajetória — quase como um membro da família.

O tempo no universo de ‘Boyhood’ transcorre vagarosamente sem acontecimentos espetaculares ou conflitos melodramáticos. É como se presenciássemos pequenos momentos de existência de cada um de seus personagens. Sobre a narrativa em si, o diretor conta que conversou com o elenco: “Muito desse filme aconteceu com alguém”, disse ele, “vocês vão deixar alguns pedaços de si mesmo para trás”. Ao sabermos sobre as histórias particulares que ocorreram durante a produção, tudo fica ainda mais marcante.
Falaremos sobre os personagens.

Começando pelo protagonista, Mason, que acompanhamos majoritariamente durante toda a projeção — somente não está presente em duas sequências, onde o protagonismo vai para a sua irmã. Apesar de seu filme ter a estrutura de um coming of age tradicional, Linklater opta por não mostrar o lugar-comum do gênero. Não temos a descoberta da sexualidade, por exemplo. Nunca descobrimos como foi o primeiro beijo do menino, assim como, logo no início do filme, já vemos Mason entrar em contato com a morte — através de um passarinho morto que ele enterra em seu quintal. Nunca mais temos o vislumbre da perda física. A narrativa se interessa mais nas relações desenvolvidas pelo protagonista e a sua maneira de ver a vida que é alterada a cada novo ano. Sobre a trajetória do menino, o diretor diz que nunca quis que o ator fizesse algo que ele ainda não tivesse feito em sua vida, não querendo estragar o contato inicial do ator. De acordo com The Atlantic, antes de escrever uma cena em que Mason chega em casa à noite, bêbado e chapado, Linklater disse que perguntou: “Vocês estão dando um rolê por aí. Você acha que tomaria uma cerveja?”. De acordo com diretor, a resposta do garoto foi: “Bem, eu prefiro maconha”. “Ok, talvez eles estejam fumando um baseado”, foi a sua conclusão.

Curiosamente, Lorelei Linklater, filha do diretor, por mais que interprete Samantha, a irmã mais velha, somente possui três meses de diferença de idade em relação ao interprete de Mason. Ela foi escolhida pela vontade de participar dos filmes do pai e por sempre estar cantando e dançando pela casa. Contudo, durante o quinto ano da produção, ela perdeu o interesse e perguntou se sua personagem não poderia ser morta. Seu pai recusou o pedido explicando que seria muito violento para o que ele estava planejando. Eventualmente, ela se interessou novamente pelo projeto. É dela, por exemplo, uma das melhores improvisações do filme. O momento ocorre quando sua personagem e o pai (Ethan Hawke) têm uma crise de risos após uma conversa constrangedora sobre contraceptivos. Linklater manteve a cena no filme ao sentir que a mesma era extremamente tocante. E realmente é. Funciona para atribuir profundida a sua personagem em uma narrativa focada majoritariamente em seu irmão.

Temos ainda a personagem da mãe, protagonizada pela Patricia Arquette. O filme funciona como um documento de registro para os variados penteados que a atriz usou para a sua personagem em ‘A Paranormal’ (2005 até 2011), seriado que protagonizava concomitantemente a gravação do filme. O nome de sua personagem, Olivia, foi trazido pela atriz de sua mãe na vida real. Em seu diálogo mais tocante, contudo, onde diz que a mudança do filho para a universidade é “o pior dia da minha vida”, a inspiração veio de uma experiência da produtora do filme — Cathleen Sutherland teria dito isso para sua filha quando ela se mudou de sua casa com a idade de Mason. Sua personagem e seu desenvolvimento tanto no meio acadêmico e empregatício, quanto envolvendo relacionamentos amorosos frustrados e sua habilidade futura de conviver consigo mesmo dão o tom para o filme. Achei a conclusão de sua história bastante satisfatória.

Um dos personagens mais misteriosos por não estar presente durante a maior parte do desenvolvimento das crianças é o pai divorciado, interpretado pelo Ethan Hawke — conhecido parceiro do diretor. O homem poderia ser definido como um exímio esquerdo-macho com ideais machistas e bem estranhos, mas aparentemente muito politizado. As únicas referências aos ataques às torres gêmeas que existem na narrativa são feitas por ele, por exemplo; além do personagem fazer campanha para a eleição de Barack Obama. Assim como a de Olivia, sua trajetória de um bad boy de meia idade para um pai responsável, por mais que não diminua o ranço que eu tive por ele durante toda a projeção, ainda é bastante interessante. O diálogo dele com Mason sobre a venda do seu conversível vem para enfatizar ainda mais essa transformação em seu estilo de vida — ao mesmo tempo que vem para nos lembrar que somente acompanhamos pequenos fragmentos das vidas daqueles personagens, visto que não presenciamos a promessa do carro feito pelo pai.
É inegável o poder presente em ‘Boyhood’ e sua narrativa. O próprio Coltrane parece confirmar o reconhecimento nostálgico que ele experiencia quando encontra os espectadores. “O olhar que vejo nos olhos das pessoas quando elas chegam até mim depois de ver o filme — é muito estranho”. Um sentimento advindo da obra e que atravessa a narrativa fílmica, seu dispositivo, atuações e elementos nostálgicos. Um sentimento decorrente da soma de todos esses fatores. O amadurecimento assistido na tela de cinema.


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