John Mulaney & the Sack Lunch Bunch (John Mulaney & the Sack Lunch Bunch, 2019)
- Pedro Alves
- 24 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 16 de mar.

Existe um problema sério que ronda a todos os criadores de conteúdo direcionados ao público infantil. Como Jacqueline Rose¹ bem pontua em seu livro, a ficção infanto-juvenil é feita de adultos, mais velhos, para crianças, mais novas. Pior! Essas produções são imaginadas (e estão em diálogo) com um público idealizado baseado em memórias nostálgicas do realizador somado à conceituação do que seria a infância em voga. Rose pontua bem que nós, os realizadores mais velhos, nunca vamos conseguir representar verdadeiramente as identidades e desejos das crianças e infâncias reais de nosso tempo. Para quem produzimos, então? Mais importante: por que produzimos conteúdo infantil?

Escultura em homenagem ao centenário da obra Os Meninos da Rua Paulo.
Com 6 anos de idade, eu tive a minha primeira crise existencial — sem saber do que se tratavam os pensamentos aos quais estava tendo. Eu me recordo do momento exato em que a conceituação de morte me acertou em cheio e com força. Passei uma tarde inteira deitada no chão e olhando as nuvens passando pela janela da casa em que morava. Alguns anos mais tarde, li o meu primeiro livro por vontade própria. Havia pedido Harry Potter, mas, ao invés disso, fui presenteado pela madrinha do meu irmão com Os Meninos da Rua Paulo do húngaro Ferenc Molnár. Tenho um carinho muito grande por esse livro e muito se deve pela maneira complexa com que a infância é retratada. Quer dizer, complexa não. A maneira não-subestimada.
Muitos autores estudam a cultura da infância, isto é, o conhecimento que é criado pelas próprias crianças entre elas mesmas; então, nem irei ensaiar tal pretensão de escrever sobre isso aqui. Contudo, quero salientar uma coisa óbvia, porém nem tanto: as crianças vivem no mesmo mundo que a gente. Elas passam pelas mesmas situações (por exemplo, a morte) e possuem uma gama tão grande de sentimentos quanto os mais velhos, mas sem a experiência acumulada necessária para saber articulá-los.
Para além disso, por mais que o Postman² preconize o desaparecimento dessa distinção entre adultos e crianças com o advento da tecnologia e o acesso a informação cada vez mais facilitado (se de qualidade ou não, é outro papo), uma coisa é clara: essa separação existirá sempre, mesmo que o conceito desapareça. Mesmo consideradas como “adultos em miniatura” como é apontado nos estudos de Philippe Aries³ ou cooptado pela indústria durante a Revolução Industrial, fisicamente existe uma separação.
Em decorrência de estarmos contidos e existindo dentro de nossos próprios corpos, cada realidade é distinta — tanto por conta das limitações, quanto pelas aptidões do mesmo. Em uma sociedade ideal, o cotidiano social (material e imaterial) se adaptaria para possibilitar com que todos desfrutassem de uma existência (o mais próxima de) igualitária. Para ilustrar que as mudanças para abarcar essas particularidades, ao menos ao pensarmos na infância, exige uma reflexão desde as atitudes mais corriqueiras cito a exposição Histórias da Infância que ocorreu em 2016 no Museu de Arte de São Paulo (MASP) onde a altura média das obras expostas foi rebaixada em até 30 cm para se igualar a visão do público infantil. Nessa mesma exposição, os áudios contextualizando as obras também possuíram as vozes das crianças.
Dito tudo isso, o que John Mulaney & the Sack Lunch Bunch (2019) pode nos mostrar sobre as particularidades infantis?
Do you know who tells the truth? Drunks and children.
O que esse “programa para crianças feito por adultos com crianças presentes” tem de especial? A ambientação propositalmente familiar do Sackett Street Garden (risas) com direito ao John Mulaney vestido a caráter e interagindo com a audiência tal qual Mister Rogers preconiza algo para a audiência. Algo que a fala inicial de Jacob durante os créditos iniciais entrega: uma leitura sincera da infância (ou seria da existência?). Ao ouvirmos o personagem falar que o pior medo dele é morrer, especificamente afogado, a gente se surpreende momentaneamente. Qual o motivo dessa nossa surpresa? O fato de que o menino fora obrigado a fazer aulas de natação e que, durante essas aulas, sábado se tornou o dia que ele menos gostava da semana serve como indício. Existe uma ilha da infância, é verdade, e esse especial (sobretudo em seus números musicais) pincela alguma das diferenças entre essa ilha e o mundo dos adultos.
Entre os números musicais temos:
Uma música de admiração do neto para o namorado de sua avó (He calls waiters “garçon”);
Uma música sobre a fixação de um menino por um prato específico: macarrão com um pouco de manteiga;
Uma brincadeira de restaurante, caso fosse dirigida pelo Christopher Nolan;
Uma menina almejando a atenção das visitas na sala de casa para que realize uma apresentação (uma das minhas favoritas);
Uma indagação sobre se flores continuariam existir, mesmo durante a noite;
A lembrança de uma mulher chorando na esquina e como tudo poderia ter ocorrido de maneira diferente (a minha favorita!);
Todas as músicas conseguem compor uma parte desse quebra-cabeça do que é ser criança. As problemáticas abordadas (falta de autonomia, sentir-se silenciado, intrigados por mistérios banais [para os adultos] etc) intrinsecamente se provam atemporais.

Existem piadas direcionadas aos adultos e a (abre aspas) vida adulta (fecha aspas), é verdade, e até, mais especificamente, a nova-iorquinos, mas esse é um especial que propõe repensar a infância, invariavelmente. Um aceno para uma antiga (para alguns) e corrente (para outros) formas de existência. Sempre é interessante recordarmos que criança/adulto é uma das pouquíssimas alteridades que existem na vida em que todos nós vivenciamos os dois lados. Todo adulto obrigatoriamente já foi uma criança. O que torna a tarefa de olhar e dialogar com a infância contemporânea mais simples (por estar além do campo empático; todos nós temos conhecimento empírico) e, ao mesmo tempo, capciosa (por estar ligado invariavelmente a reminiscências de nossas infâncias particulares). De uma forma ou de outra, essa indagação contínua que pontei no início do meu texto continua pertinente a cada novo dia que passa: por que produzimos conteúdo infantil?
Referências ¹ROSE, Jacqueline. The case of Peter Pan, or the impossibility of children’s fiction. University of Pennsylvania Press, 1993. ²POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Graphia, 2006. ³ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Ltc, 1981.
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