Kids (1995) e o neo-realismo italiano
- Pedro Alves
- 19 de mai. de 2019
- 10 min de leitura

Um claro paralelo pode ser traçado entre a escola neorrealista italiana e quase toda a trajetória do diretor Larry Clark na sétima arte. Nesse artigo, ressaltarei as semelhanças e as diferenças presentes entre o movimento cinematográfico e o primeiro longa-metragem do diretor: Kids de 1995.
Era o fim da Segunda Guerra Mundial e do fascismo. A Itália estava começando a engatinhar na sua reconstrução após o fim da ocupação nazista. No mercado cinematográfico, o país estava sendo bombardeado por produções hollywoodianas. Por se tratar de uma sociedade em crise que teve uma severa mudança em suas condições sociais, econômicas e psicológicas; era difícil manter a ilusão apresentada por esse tipo de cinema. Isso fica ainda mais evidente ao apontar as consequências devastadoras da guerra como o alto índice de desemprego, a estrutura política desintegrada e a economia totalmente enfraquecida. Foi nesse contexto aparentemente sem esperança que o neo-realismo italiano surgiu. Os traumas do pós-guerra levaram cineastas e críticos a assumirem posição mais criteriosa em relação aos problemas sociais e reagirem contra os esquemas tradicionais de produção. A experiência fascista mostrara como o cinema era uma enorme arma de propaganda, o que a nova geração de autores, de ideologia de esquerda, e muitas vezes ligados ao Partido Comunista, iria se utilizar. Ao contrário do cinema clássico norte-americano, os diretores desse movimento não criavam histórias de ficção mirabolantes ou, muito menos, retiravam de livros as tramas que gostariam de encenar. A principal fonte de inspiração deles partia da realidade em que estavam inseridos. O cotidiano passou a ser a musa inspiradora para os cineastas. Eles perseguiam o desejo de retratar a realidade sem interferências. Por conta da crise vivenciada na época, as películas neo-realistas se apresentaram como antagônicas ao cinema hollywoodiano (ou cinema de espetáculo) em vigor, tanto tecnicamente quanto esteticamente. Para eles, a representação da realidade deveria ser substituída pela realidade em si. No quesito de tornar quase inexistente o limiar entre ficção e documentário, o movimento foi pioneiro. Chegando a ser dito que ele seria uma “ficção feita nos ombros do documentário”.

A exibição de Roma, Cidade Aberta de Rossellini em setembro de 1945 — logo após a libertação de Roma — , pode ser considerada o marco inicial do movimento. Contudo, a origem do termo “neo-realismo” é atribuída a Mario Serandrei que o utiliza ao se referir a Obsessão (1943), filme no qual foi montador. Suas palavras foram: “Não sei como poderia definir esse tipo de cinema se não com o epíteto de ‘neo-realístico’”. Uma curiosidade sobre Roma, Cidade Aberta é que as filmagens do filme se iniciaram ainda durante a ocupação nazista na capital, o que confere ao filme elementos documentais. Em seus aspectos técnicos, o cinema neo-realista italiano é caracterizado pelo frequente uso de atores não profissionais; filmagem em ruas, não mais em estúdios como ditava o hábito hollywoodiano; aproveitamento de restos de filmes e pedaços de rolos; e pouco uso de artifícios técnicos como iluminação artificial e construção de cenários, não só pela falta de recursos para a utilização de tais ferramentas como também pela busca da simplicidade e com o intuito rebelde e revolucionário de quebra dos paradigmas vigentes. Por filmarem muito em espaços abertos, o neo-realismo ocasionou um significante número de filmes parcialmente mudos devido à qualidade de som captada. A estética utilizada pelos cineastas é a documental. A preferência por não atores exemplificam o quanto os diretores prezavam pela autenticidade em seus trabalhos. O principal objetivo para eles era representar o cotidiano de uma Itália devastada, assim como seus habitantes. Sobre isso, dois filmes se destacam: ‘Ladrões de Bicicletas’ e ‘A Terra Treme’, ambos de 1948.

Em Ladrões de Bicicletas de Vittorio De Sica, a classe assalariada a procura de emprego se torna a protagonista. Na trama, Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani) consegue um emprego como colocador de cartazes. Entretanto, para conseguir o trabalho, ele necessita de uma bicicleta. Fato que o obriga a penhorar objetos de sua casa para adquirir uma. A trama se desenrola a partir do dia em que sua bicicleta é roubada e, junto com seu filho, Bruno (Enzo Staiola), ele passa a procurá-la por toda Roma.

Já em A Terra Treme, os protagonistas são moradores de uma aldeia de pescadores sicilianos. O enredo foca na contínua degradação de uma família. Todos os atores são pertencentes a uma aldeia de pescadores real e isso é salientado durante os créditos iniciais que opta por não mostrar o nome dos interpretes, mas a informação de que todos são pertencentes a essa aldeia. Existem algumas características presentes nas narrativas desses filmes que devem ser destacadas. A importância dada às questões sociais, já citada anteriormente; personagens que incorporam as dúvidas e incoerências inerentes aos seres humanos — fazendo com que eles deixem de ser ambivalentes e se tornem complexos, sendo nem totalmente bons, nem completamente maus; e a fragmentação da narrativa. O uso dessa estrutura narrativa não ortodoxa que evita as convenções clássicas de continuidade também caracteriza os filmes desse movimento. Dos interpretes, não recebíamos atuações “exageradas” e, do roteiro, não encontrávamos ações que viesse a justificar as motivações ou causas psicológicas bem definidas. Mais tarde, todas essas características seriam absorvidas e desenvolvidas pelos cineastas franceses da Nouvelle Vague. Existe até hoje certo cuidado ao considerarmos o neo-realismo como um movimento ou uma escola. O fato é que, como o movimento noir, o neo-realismo não foi exatamente um movimento pensado e organizado por um grupo unido de cineastas, mas sim uma espécie de orientação estética. Como declararia De Sica: “Não é que um dia, tenhamos sentado a uma mesinha da Via Veneto, Rossellini, Visconti e eu, e disséssemos: “Agora vamos fazer o neo-realismo”. Nós mal nos conhecíamos”. O prestígio adquirido por estes filmes e diretores proporcionou com que eles fossem procurados nos Estados Unidos — recebendo investimentos e distribuição. Os filmes conseguiram fazer sucesso tanto nos Estados Unidos quanto na França, levando a que atores franceses e americanos passassem a ser presença frequente nos filmes italianos a partir da década de 1960. O neo-realismo italiano teve duração de cerca de uma década (de 1943 a 1953), e seus principais expoentes foram os cineastas Roberto Rosselini, com filmes como o já citado Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà (1946) e Romance na Itália (1954); Luchino Visconti com Obsessão (1943) e A Terra Treme (1948); Vittorio De Sica e o roteirista Cesare Zavattini com Vítimas da Tormenta (1946) e o aclamado Ladrões de Bicicleta (1948). O movimento foi gradativamente perdendo sua força devido aos governos conservadores que assumiram o poder na Itália e que favoreceram produções americanas às italianas no circuito de distribuição. Após o “turbilhão” neo-realista, outra “onda” se seguiu: a princípio, o “cinema crítico” (realista), expressão cunhada por Guido Aristarco com base nas reflexões do húngaro Lukács — expressão essa que foi criticada por referir-se a uma suposta superação do neo-realismo; e, então, um “realismo subjetivo” — em oposição ao “realismo objetivo”, a proposta neo-realista propriamente dita —, mais intimista, que teve por nomes mais significativos Federico Fellini e Michelangelo Antonioni. Como herança a história do cinema, o neo-realismo italiano deu origem ao Cinema Moderno a partir de seu ideal de "insurreição" dos cinemas nacionais contra a produção cinematográfica hollywoodiana; influenciou também o Cinema Novo brasileiro e o Cinema Iraniano; além de cineastas italianos como Fellini, Antonioni e Scola adaptaram aspectos dos filmes neo-realistas para o contexto social de sua época.
Agora iremos analisar a trajetória do diretor Larry Clark. Lawrence Donald “Larry” Clark nasceu em 1943 em uma cidade chamada Tulsa localizada no estado de Oklahoma nos EUA. Ele veio a ganhar notoriedade após o lançamento de seu primeiro longa-metragem em 1995, mas, muito antes disso, seu caráter artístico com ideais neo-realistas já se mostrava presente. 24 anos antes de realizar seu filme de estreia, Clark deu início a constrtução de sua linguagem visual como fotógrafo lançando seu primeiro livro de fotografias: o polêmico ‘Tulsa’. O livro que recebe o nome de sua cidade natal mostra o cotidiano de viciados em drogas criando um ensaio autobiográfico que nos remete às suas próprias experiências nos anos 1960. O livro alçou o nome de Larry Clark, transformando-o em um dos mais influentes integrantes na renovação do realismo americano. O retrato funcionando como uma oposição entre a pose a o instantâneo, além de uma complexa relação fotógrafo-fotografado, são algumas das questões mais importantes identificadas nas imagens feitas por Clark.



Sobre seu trabalho, Clark diz:
Eu não tento ser controverso, eu apenas tento ser honesto e dizer a verdade sobre a vida. Vindo do mundo da arte, nunca penso que há coisas que não podem ser feitas ou mostradas. Eu acho que os filmes de Hollywood realmente subestimam seu público. Eu fui um artista por muitos e muitos anos. Não estou interessado em fazer filmes para ganhar dinheiro. Estou interessado em fazer um trabalho que eu fique satisfeito, mostrando a vida das pessoas que não são mostradas. Se eu pudesse ver isso em qualquer outro lugar, eu não teria que fazer esses filmes.
Com os mesmo ideais dos diretores neo-realistas, não é difícil perceber que Larry Clark iria perpassar, uma hora ou outra, pelo mesmo círculo de características do movimento. Isso acontece precisamente em 1995 com o lançamento de Kids, que estabelece a reputação do diretor como um dos cineastas mais polêmicos de seu tempo. O filme teve sua história baseada nas idéias de Larry Clark em conjunto com Leo Fitzpatrick e Jim Lewis, e seu roteiro escrito por Harmony Korine. Através da produção do Gus Van Sant, já influente na época, Larry Clark pode servir-se de uma ótima distribuição pelo circuito cinematográfico internacional; porém o filme trouxe mais críticas do que uma recepção positiva.

A polêmica ao redor do filme surge por retratar sem “filtros” a realidade de um grupo de adolescentes, onde, durante um dia, preocupam-se em se divertir, consumir drogas, fazer sexo, e desrespeitar regras ou leis, num enredo onde as questões morais não são colocadas em discussão e sem “final feliz”. O protagonista é Telly (Leo Fitzpatrick), um adolescente que prefere transar com virgens por pensar que não será infectado com HIV. Todavia, o que o adolescente não sabe é que ele próprio é portador do vírus e, sem saber, contribui para a proliferação da doença. Jennie (Chloe Sevigny), um de seus relacionamentos passados, descobre que é soropositivo e atravessa a cidade numa tentativa desesperada de avisá-lo. Larry Clark estreia no cinema com um dos filmes mais importantes do ano de 1995. Tal importância se deve, em grande parte, pela polêmica que gerou ao mostrar de forma quase documental 24 horas na vida de um grupo de adolescentes dos subúrbios de Nova York. De maneira bastante clara, Larry Clark afirma existir um abismo intransponível entre as gerações de pais e filhos. A relação do protagonista com sua mãe serve ao propósito de intensificar esse aspecto. Uma das frases usadas para promover o longa-metragem foi: "Um alerta para o mundo”. Ao contrário do que muitos espectadores acharam na época, a frase não se referia ao fato da trama mostrar jovens que bebem, se drogam e fazem sexo — fatos que já existiam antes (e ainda permanecem). Espectadores como o antigo senador norte-americano Bob Dole que descreveu o filme como “um pesadelo de depravação”. Larry Clark construiu com seu filme um retrato da disseminação do vírus HIV entre a juventude. Esse foi o seu alerta. Um tempo após sua estreia, o filme chegou a ser usado em escolas norte-americanas, como uma forma pedagógica de iniciar o debate sobre a prevenção de DSTs.

A escolha por uma maneira quase documental de conduzir a trama (usando handycams nas filmagens) se mostrou um belo acerto da direção. Larry Clark lida com formas de representação naturalista que acabam se concretizando como o resultado de toda uma pesquisa comportamental e iconográfica desenvolvida por ele. Essa constante emulação da realidade vai se mostrar presente em todos os outros trabalhos do diretor. Sob esse aspecto vale ressaltar seu terceiro longa-metragem intitulado Bully (2001), onde Larry Clark vai além e faz de um caso policial real o enredo de uma de suas obras. Baseada no assassinato de Bobby Kent, em Fort Lauderdale, Flórida; a história segue Marty e sua namorada que, após diversos abusos físicos cruéis por parte de Bobby, planejam matá-lo.

A semelhança de ‘Kids’ e o neo-realismo italiano começa na mais trivial das características: o uso de não atores. Leo (que interpreta Telly no filme) foi um estreante em longas, assim como as atrizes Chloe Sevigny e Rosário Dawson. Nesse aspecto, o filme se assemelha ao longa-metragem A Terra Treme de Visconti, utilizando jovens já imersos na cultura underground da época para reencená-la em tela. Esse aspecto da atuação acaba passando um pouco despercebido por conta da preocupação e importância dada pela direção a estética (sobrepondo as atuações, muitas vezes) — provavelmente como consequência da bagagem trazida pelo diretor do universo da fotografia. A mesma estética documental presente em todos os longas-metragens do neo-realismo italiano se encontra presente na película. O diretor, inclusive, se utiliza de handycams, o que acrescenta ainda mais ao estilo “realidade filmada”. A constante procura pela realidade dentro da própria realidade também é um ponto comum entre o filme e o movimento italiano. Clark desde seus primórdios ao trabalhar com fotografias, expressa esse desejo: retratar o cotidiano da juventude de uma geração. No decorrer dos filmes lançados, percebemos o fator semelhante a todos seus trabalhos audiovisuais: a juventude. E não uma juventude qualquer. Uma juventude sem senso de responsabilidade, sem preocupação com o futuro e que se mostra inconsequente na maior parte das situações. Assim como o neo-realismo que tentava apresentar para o povo italiano a história do próprio povo, o cinema autoral de Larry Clark veio para redefinir o imaginário popular de juventude, principalmente o ideário norte-americano de jovem em seus filmes, para a própria sociedade. Por mais chocante que o público tenha recebido o seu primeiro longa-metragem, a relação diretor-jovens se mostrou bastante prolífera e a película se tornou um sucesso para o seu público-alvo. O roteiro improvisado, os longos planos em locação e a liberdade dada aos atores de incluir gírias, pronúncias particulares e termos típicos da juventude da época; mostram-se como outras características que Larry Clark divide com o neo-realismo. O filme de Clark também possuiu baixíssimo orçamento se comparado com as produções da época e a presença quase nula de efeitos visuais, o que barateava ainda mais o custo de suas obras. Duas regras seguidas a risca pelos diretores italianos da época neo-realista. As morais revolucionárias tanto do diretor norte-americano, quanto dos neo-realistasse eram bastante diferentes, todavia. Se a Itália estava lutando contra as consequências do fascismo, Clark estava lutando contra nada mais, nada menos, que idealização do retrato da juventude da época, ao mesmo tempo em que confrontava o falso moralismo por parte dos cineastas contemporâneos. Por fim, o neo-realismo e o filme Kids compartilham importantes semelhanças. Suas diferenças podem ser entendidas como fatores consequentes de suas especificidades como a época em que foram lançados e produzidos, ou o público-alvo a qual se destinavam.
BIBLIOGRAFIA
FABRIS, Mariarosaria. Neo-realismo italiano. In: MASCARELLO, Fernando (org.) História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-realismo cinematográfico italiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1996. PERIN, Arthur; PENA, Jorge; RODRIGUES, Gustavo. O Neo-realismo italiano e suas influências. Espírito Santo. 2009. https://www.youtube.com/watch?v=NpFZUEOB9CM (acessado em 05/04/2019) http://ajanelaencantada.wordpress.com/neo-realismo-italiano/ (acessado em 05/04/2019) http://www.museudocinema.com.br/2008/12/neo-realismo-italiano.html (acessado em 05/04/2019) http://www.chasqueweb.ufrgs.br/~miriam.rossini/neo_her.html (acessado em 05/04/2019) http://comartecultura.wordpress.com/2013/06/24/kids-a-juventude-sob-o-olhar-de-larry-clark/ (acessado em 05/04/2019) http://www.cineplayers.com/comentario/kids/12397 (acessado em 05/04/2019)
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