O território fantástico nos filmes coming of age
- Pedro Alves
- 18 de abr. de 2019
- 9 min de leitura
Atualizado: 4 de jun. de 2022

Territórios ficcionais sempre exerceram um grande fascínio nos leitores de narrativas fantásticas. Embora tenha sido um dos elementos relegados ao segundo plano em estudos e pesquisas, acompanhar a trajetória de personagens como Harry Potter ou dos irmãos Pevensie ao atravessarem a fronteira que divide o mundo comum do fantástico, e todo conflito que se desenrola entre o choque entre as duas regiões, não pode ser ignorado. Da mesma maneira que a utilização desses espaços fantásticos em filmes que não são classificados a primeira vista como de fantasia — a exemplo dos longas-metragens ‘Onde Vivem os Monstros’ (2009), do diretor Spike Jonze, e ‘Sete Minutos Depois da Meia-Noite’ (2016), do diretor J. A. Bayona.
A análise de espaço ficcional fantástico perpassa pela apresentação de três conceitos fundamentais: forasteiro, heterotopia e espaço liso. A concepção de forasteiro de Lucie Armitt é apresentado no texto de Karin Volobuef inerentemente correlacionada com a ideia de fronteiras. As fronteiras serviriam para delinear o limite entre a realidade cotidiana de um personagem (o racionalmente aceito e compreendido) e a fantástica (ininteligível, fabulosa). Esse personagem ao atravessar a fronteira de uma realidade para outra estaria invariavelmente na condição de forasteiro. Em filmes coming of age, esses espaços fantásticos vêm para causar o efeito inverso da literatura fantástica clássica; já que seus protagonistas se sentem um forasteiro em sua própria realidade cotidiana.
Analisemos ‘Onde Vivem os Monstros’ e ‘Sete Minutos Depois da Meia-Noite’.
Max, o protagonista do filme de Jonze, não consegue compreender sua realidade cotidiana e lidar com seus sentimentos. Ele não consegue ter uma comunicação satisfatória com sua mãe e irmã, e se sente um estrangeiro em sua própria casa. O conflito do menino é interno e parte da sua inabilidade de verbalizar o que sente.
Dois acontecimentos são fundamentais para que Max decida cruzar essa fronteira. O primeiro é a percepção do garoto de não se sentir protegido pela irmã que, ao vê-lo ser humilhado pelos amigos dela, nada faz em sua defesa. Fato que ocasiona com que o protagonista se descontrole e invada o quarto da irmã; destruindo suas coisas. O segundo ponto importante é quando o menino se sente trocado pela mãe quando a mesma chama um desconhecido para jantar. Mais uma vez, o menino não consegue se expressar e acaba agredindo a mãe. Sem conseguir compreender o misto de sentimentos que está sofrendo, ele cruza a fronteira do fantástico para tentar compreender a si mesmo.


Momentos de fúria do personagem
Já em “Sete Minutos Depois da Meia-Noite”, o protagonista também se sente um forasteiro em seu cotidiano, mas aceita todas as ações passivamente. A mãe de Conor está passando por um tratamento muito difícil contra o câncer, o menino sofre agressões pesadas na escola e, para completar, sua avó — com quem não tem uma boa relação — fica responsável por ele, enquanto sua mãe está incapacitada. Todos esses acontecimentos culminam com que ele seja arrastado para o outro lado da fronteira do fantástico.


Atravessando a fronteira
A ação que proporciona com que os dois garotos atravessem os respectivos limiares de realidade ocorre. No caso de Max, ele atravessa a fronteira no sentido literal — velejando durante dias em um barquinho até que, por fim, é levado a uma ilha onde vivem os monstros do título. Conor, entretanto, é sugado para o fantástico quando um monstro surge na janela do seu quarto e o obriga a escutá-lo. O conceito de heterotopia se faz necessário pra entendermos os lugares para onde ambos os garotos vão. Proposto por Michel Foucault, heterotopia é apresentado por Marisa Martins Gama-Khalil como “espaços que incomodam por apresentarem a multiplicidade, a justaposição e a inversão dos planos”. Espaços heterotópicos seriam, então, lugares que desestabilizariam por não possuírem nenhum sentido comum intrínseco a ele. Um lugar que, em um primeiro contato, pareceria o oposto da realidade, mas que também a abarcaria. A heterotopia poderia fazer com que um indivíduo perdesse totalmente o seu rumo e obrigá-lo a repensar a sua realidade cotidiana. Elas “representariam o real, já que elas desenham a desordem e a fragmentação espacial e por essa razão abrem regiões que inquietam os olharem habituados a organizar as palavras, as coisas, os homens e os objetos” (apud GAMA-KHALIL, 2012, p.35). Esses espaços heterotópicos funcionam brilhantemente em narrativas coming of age. Eles elevam a realidade a um nível extremo e faz com que os protagonistas infantis consigam compreender o que antes, para eles, parecia tão distante e complexo. Nem Max, nem Conor, tentam contestar a realidade da situação. Eles aceitam de imediato o contato com criaturas fantásticas e tentam lidar com isso da maneira que parece melhor a eles.

Max, recém-chegado à ilha habitada por criaturas com o triplo de seu tamanho, resolve conversar com os monstros. No fim desse diálogo, o menino é coroado rei daqueles seres. Conor, por sua vez, fica temeroso durante a primeira visita da criatura. Contudo, ao perceber que o monstro não veio lhe fazer mal algum, aceita a sina de receber a visita do gigante toda a noite.
A permanência de Max na ilha dos monstros e a viagem a lugares fantásticos (ou o cruzamento do real e o sobrenatural) que o monstro transporta Conor, são reflexos diretos da realidade dos meninos. Todas as vivências dos protagonistas em territórios fantásticos influenciam diretamente em como os mesmos lidam com a realidade cotidiana. Nos dois casos
O espaço fantástico aparece como uma variação subjetiva do espaço objetivo — ao mesmo tempo homogêneo e contínuo — (…). O mundo exterior deixa de ser uma realidade plena para transformar-se em outra realidade, que se constitui no interior do sujeito, irradiando-se para o exterior sem demarcar contornos precisos. (GAMA-KHALIL, 2012, p.32)
Cada uma das histórias contadas pelo monstro a Conor é uma lição que o menino precisa aprender e utilizar em sua vida real. Assim como o real objetivo da criatura que é extrair do menino o seu desejo mais íntimo e obscuro relacionado a mãe e sua doença. Já as lições de Max são personificadas nas criaturas, onde cada uma delas simboliza um sentimento que o garoto não consegue lidar. Entre as criaturas estão Carol, o principal deles, que representa o egocentrismo de Max e, não por acaso, torna-se o favorito do menino. Ao lado dele estão o bode carente Alexander, a irritadiça Judith, o amável Ira, o melancólico Touro, o companheiro Douglas e KW — o sentimento mais estranho para o garoto — o materno. O conceito de espaço liso de Gilles Deleuze e Félix Guattari é importante para compreender a sobreposição entre a realidade cotidiana e a fantástica. Ele nos é apresentado como “nômade e direcional, estabelecendo-se como uma superfície que pode alastrar-se em variadas e alteradas direções” (apud GAMA-KHALIL, 2012, p.36). Algo que chega a ser comparado por Gama-Khalil a configuração de um rizoma pela ideia de que sua estrutura não teria um fim delimitado e nem bordas, mas, sim, “um meio pelo qual se cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.32). Conforme vamos seguindo a trajetória de Max e Conor tanto o território cotidiano, quanto os territórios fantásticos mesclam-se sem que possamos entender o que é ou não real. Para Conor, o que está ocorrendo na “realidade” é mais evidente por conta de duas situações: quando ele ajuda o monstro a destruir uma casa no espaço fantástico da criatura e percebe que destruiu a sala da avó, e quando ele tem a ajuda do monstro para enfrentar o valentão da escola e descobre que ninguém conseguiu enxergá-lo. “A existência do sobrenatural não é inequívoca. O narrador, longe de dar-nos certeza sobre o que de fato ocorre, expressa-se de modo a sugerir, mas não a confirmar o sobrenatural” (VOLOBUEF, p.33). Para Max, essa noção é mais sutil. As dicas são dadas mais visualmente sobre a realidade por trás da ilha. Por exemplo, a cidade que o menino criou e tem em seu quarto é bastante parecida com a que Carol construiu na sua caverna secreta.


Assim como a existência de um barquinho e de um objeto que se assemelha bastante a habitação que Max começa a construir na ilha dos monstros.

Como cita Gama-Khalil
O teórico alemão Wolfgang Iser (1996), em um estudo no qual investiga a dialética entre o fictício e o imaginário, considera que o homem, pela incapacidade de alcançar um completo domínio de si mesmo, acaba por encenar sua duplicidade num espaço imaginário.
A dicotomia entre os dois territórios é bastante perceptível. Para Max, a realidade cotidiana era um lugar que não conseguia acolhê-lo. Ele não conseguia entender a razão das escolhas feitas pelas outras pessoas, principalmente por sua mãe. Na escola, o professor conta a ele que daqui a milhões de anos o sol irá morrer e desaparecer pra sempre. Isso mexe com o garoto, pois ele ainda não sabe lidar com o conceito de mortalidade e finitude. Já em sua ilha de monstros, o garoto tem todas as criaturas a sua disposição para realizar o que ele ordenar. Ele é o rei. A primeira decepção que ocorre ao garoto é relacionada a isso. Ele achava que seria fácil fazer decisões para manter todos felizes, mas acaba descobrindo que é uma tarefa muito mais difícil do que imaginava e sendo abandonado — concretizando o pior medo do menino. Em uma das suas brincadeiras com os monstros, uma das criaturas perde um braço, mas não morre. Para o garoto esse conceito é inadmissível, principalmente sob suas ordens. O monstro acaba tendo seu braço restituído por um membro falso feito de pedaços de madeira. Para Conor, a dicotomia é mais complexa. Em seu cotidiano, o menino não consegue lidar com o fato de sua mãe estar morrendo de câncer, nem revelar pra professora os constantes e rotineiros abusos que sofre dos colegas de classe, e não consegue ter uma relação boa com sua vó — que também é uma figura dura e fria, muito diferente da figura meiga e amável de sua mãe. Em suas lições, o monstro tenta passar morais que, à primeira vista, parecem não ter nenhuma conexão com as situações em que vive. Conor, em dado momento, implora para o monstro salvar a mãe dele achando que essa seria a missão da criatura. Ao que ela responde que estava ali para salvá-lo, o que confunde o garoto. Ele não consegue compreender a razão de precisar de ajuda.

No final de ambas as narrativas, os garotos têm que confrontar o seu medo mais íntimo e tomar a decisão que mais temiam. No caso de Max, o menino se conscientiza que não consegue tomar conta dele próprio e decide voltar para a sua realidade. Já não é mais o mesmo e por isso consegue tomar essa decisão. Durante sua partida, Carol pede para que ele fique. O menino decide ir embora mesmo assim; percebendo que fará mais bem para todos os habitantes da ilha, caso fosse embora. Com essa decisão, ele acaba se despedindo da criatura que era sua versão monstruosa e com isso vencendo seu medo de ser abandonado. Conor revida a agressão dos valentões, o que faz com que seja mandado para a direção da escola e finalmente revele o que sofria. Ele também consegue estreitar os laços com sua avó após um diálogo franco. A lição mais dolorosa para o menino, entretanto, é revelar ao monstro o seu desejo pela morte de sua mãe para dar fim ao sofrimento dela, e entender que ele não era uma pessoa má somente por ter esse pensamento. No fim de ambas as narrativas, a noção do que realmente aconteceu ou não fica em suspenso. Acompanhamos Max refazer todo o trajeto com seu veleiro até voltar a sua casa e encontrar sua mãe que o aguarda preocupada. Ainda está de noite, assim como estava quando o menino fugiu. Não podemos afirmar que nada aconteceu ou não, o que consegue preservar a ambiguidade própria do fantástico em sua narrativa. Já Conor descobre ao fim que sua mãe também conhecia o monstro que vinha o visitar a noite e que ela o desenhara na infância dando duas possibilidades para a narrativa: ou o monstro ter sido parte de uma história contada para Conor por sua mãe quando era muito pequeno e tudo não passou de sua imaginação, ou que sua mãe também compartilhou a conexão que o menino teve com a criatura quando era pequena. Esse espaço dicotômico do território fantástico cumpre sua função de desenvolvimento nas narrativas dos filmes coming of age ao sofisticar a forma como os personagens amadurecem. Cada vez mais, elementos fantásticos vêm sendo fundidos a outros gêneros narrativos criando hibridizações como esses dois exemplos. Assim como o personagem Anselmo de E. T. A. Hoffmann pode ser visto como antecessor de Harry Potter, esses filmes podem ser antecessores de um novo subgênero no coming of age contemporâneo: o fantástico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GAMA-KHALIL, Marisa Martins (2012). “As teorias do fantástico e a sua relação com a construção do espaço ficcional”. In: In: GARCÍA, Flavio; BATALHA, Vertentes teóricas e ficcionais do Insólito. Rio de Janeiro: Editora Caetés. p.30–38.
HAUGE, Michael (2015). “Q&A: Coming of Age Stories”. In: http://www.storymastery.com/qa/qa-coming-age-stories/ (acessado em 9 de julho de 2017).
OLIVEIRA, Bruno Silva de; SILVA, Alexander Meireles da Silva (2012). “Entrando Na Toca Do Coelho E Encontrando O Outro Mundo: O Espaço Insólito Em Coraline, De Neil Gaiman”. VOLOBUEF, Karin. E. T. A. Hoffmann e a literatura fantástica. In: SENA, André de. (Org.). Literatura fantástica e afins. 1ed.Recife: Editora Universitária UFPE, 2012, v., p. 23–38 ZHANG, Rebecca; OZAKI, Ryohei; PARIHAR, Parth (2014). “The “coming of age” of coming-of-age films”. In: https://princetonbuffer.princeton.edu/2014/06/12/the-coming-of-age-of-coming-of-age-films/ (acessado em 9 de julho de 2017). FILMOGRAFIA CITADA
Onde Vivem os Monstros (Where the Wild Things Are, Spike Jonze, 2009, 101 minutos) Sete Minutos Depois da Meia-Noite (A Monster Calls, J. A. Bayona, 2016, 108 minutos).
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